
É natural que, com a intensificação da reflexão sobre o livro infantil e juvenil e sobre todos os temas em torno da formação de leitores, e a busca progressiva pela sua desinstrumentalização, algumas das práticas em uso, alguns rótulos passem finalmente a ser questionados. A mudança de critérios de valoração, do próprio entendimento do significado e abrangência do livro e do que seja esse leitor, implicam e pressionam para uma revisão de velhos procedimentos e praticas.
A reação de muitos – editores, autores, ilustradores e mediadores – frente à rigidez das faixas etárias leitoras indicadas nos livros decorre deste processo de reflexão sobre o livro infantil, assim como de uma tendência contemporânea marcante onde o livro ilustrado se impõe rompendo a barreira das idades. Não é de hoje que uma reação a tais rótulos se verifica. Tanto que esse enquadramento vem sofrendo uma visível flexibilização, seja pelo seu uso em termos menos rígidos, seja, como na ponta mais avançada do mercado, pela sua simples desconsideração. A adoção de faixas etárias para indicar os leitores de um determinado livro, além de promover uma nivelação arbitrária, reduz e limita a vida e a abrangência dos livros.
A diversidade dos níveis leitores entre os leitores de uma mesma idade, seja pelas diferenças de escolaridade, culturais ou econômicas – como a proposta alternativa de Nelly Novaes Coelho de conceituação, não mais por idade, mas por nível leitor – já puseram por terra a adoção de faixas etárias há algumas décadas. A sobrevivência das faixas etárias, tal como persiste hoje, atende exclusivamente a exigências do mercado escolar.
A origem dos indicadores de faixas etárias faz parte de todo um aparato maior que pouco a pouco vai sendo criado para orientar o trabalho de “leitura literária” dentro da escola. Desde o início, e isso coincide com o momento de afirmação internacional da “literatura infantil e juvenil” das décadas de 1950/1960, a indicação da idade foi uma forma de orientação dos mediadores (família, escola, etc) que, pela primeira vez, se deparavam com uma produção voltada especificamente para um destinatário que não era diretamente ele. Esse apoio para a escolha dos títulos por mediadores pouco sintonizados com a natureza dessa nova produção e com uma oferta de mercado cada vez maior talvez tenha tido o seu papel nestes primórdios.
Mas o que inicialmente foi uma orientação acabou virando uma norma que, tal como ainda existe hoje, se transformou numa camisa de força tanto para os mediadores que se acomodam e ficam reféns desses critérios, como dos livros que, quando bons, se perdem ou esgotam na faixa etária. Quem inventa e determina esses limites e critérios? Na maior parte das vezes não é nem o autor, nem o ilustrador, mas o editor que quando recebe um original lhe dá forma para encaixá-lo no seu catálogo. E assim, se muitos textos originalmente podem servir a muitas idades, a escolha do ilustrador, do formato, da tipologia, a própria concepção do produto dada pelo editor o coloca dentro de uma das gavetas que ele mesmo criou.
O mundo editorial se apropriou desses recursos e criou todo um aparato que acompanha os livros escolares (indicadores, notas, guias, biografias, etc.). São os editores que, de acordo com as suas concepções de infância, juventude, leitura, literatura, põem em movimento essa roda que, na maior parte das vezes, deixa de lado critérios referentes à análise literária. E isto é tão visível que, se olharmos tudo o que se produz neste mercado, essa adequação aos critérios escolares salta aos olhos em detrimento de critérios mais próximos da qualidade literária e artística.